Por Daniel Becker, César Máximo e Victor Hugo Brito
Nos últimos anos, a expansão das aplicações de inteligência artificial (IA) tem suscitado preocupações sobre a veracidade das reivindicações feitas por atores do mercado financeiro em relação ao uso dessa tecnologia. Em uma recente conferência do The Messenger, realizada no final de 2023, Gary Gensler, presidente da Securities and Exchange Commission (SEC), órgão equiparado à Comissão de Valores Mobiliários (CVM) no Brasil, emitiu um alerta contundente contra o que agora é conhecido como AI Washing.
Inicialmente cumpre esclarecer que o sufixo “washing” é utilizado para descrever uma prática de marketing ou relações-públicas em que uma organização tenta parecer mais responsável ou comprometida com certas questões do que realmente é. Essencialmente, é uma forma de “lavagem”, de camuflar a realidade, apresentando uma imagem falsa ou exagerada. Por exemplo, no caso do greenwashing, empresas promovem seus produtos ou políticas como sendo ambientalmente sustentáveis ou amigáveis, quando, na verdade, seu impacto ambiental pode ser significativo ou suas práticas sustentáveis são mínimas. Da mesma forma, o rainbow washing ocorre quando empresas usam símbolos associados à comunidade LGBTQ+, como as cores do arco-íris, em suas campanhas de marketing. No entanto, muitas vezes essas empresas não apoiam de fato as causas LGBTQ+ em suas políticas ou ações.
Por sua vez, AI Washing, ou Machinewashing, seria o discurso utilizado pelas empresas para se posicionarem em destaque perante o mercado, com o objetivo de informar ao público que seus produtos e soluções utilizam AI, quando, na verdade, tão somente se valem de business intelligence (BI) ou, ainda, outras ferramentas sem que, de fato, ocorra o manuseio de aplicações de AI no contexto de suas atividades. Dentre os fatores para tal fenômeno, menciona-se o hype da tecnologia e as promessas de automatização, eficiência e economicidade, as quais conferem uma pressão mercadológica para que os empreendedores implementem a tecnologia nos mais diversos segmentos de sua operação.
Durante a conferência do The Messenger, Gensler compartilhou sua visão, onde destacou a interseção entre finanças e tecnologia, enfatizando que a AI já desempenha um papel crucial no setor financeiro há anos, inclusive por seguradoras para processamento de sinistros e por instituições financeiras para prevenir atividades suspeitas, como lavagem de dinheiro. Desde a automação de processos em caixas automáticos, até a detecção de fraudes em cartões de crédito, em menor ou maior grau, a AI é uma realidade. No entanto, Gensler expressou preocupação com a possibilidade de aplicação da tecnologia, quando a AI é usada para decisões como concessão de empréstimos e seguros, pois, não raro, a tecnologia leva a tomada de decisões enviesadas e socialmente deletérias. Em outras palavras, o algoritmo que rege a tecnologia pode dispor de comandos discriminatórios e eticamente reprováveis.
Gensler destacou iniciativas regulatórias, como a proposta da SEC sobre o uso de AI por robo-advisors, para garantir que essas tecnologias não entrem em conflito com os interesses dos clientes. Em uma análise macroeconômica, Gensler alertou para a tendência de que grandes partes do setor financeiro se tornarão dependentes de modelos e conjuntos de dados específicos, associado à alta probabilidade de que apenas alguns provedores, justamente os que detêm maior capacidade de recursos para o desenvolvimento das ferramentas, irão dispor dos modelos fundamentais utilizados por todo o setor, destacando a complexidade desse novo paradigma tecnológico.
O Federal Trade Comission (FTC), agência federal norte-americana, com enfoque na proteção ao consumidor e aplicação das leis antitruste, também se manifestou acerca da importância na aplicação do AI em estrito compliance, de forma transparente e isonômica, evitando a utilização de ferramentas que possam produzir impactos discriminatórios ou parciais perante os consumidores diretos ou indiretos da ferramenta, demonstrando uma harmonia entre FTC e Gensler na interpretação e nos riscos da AI junto ao mercado de um modo geral.
O alinhamento quanto ao posicionamento da SEC e de seu presidente em relação à AI Washing ultrapassa o mero discurso e se consolida na prática: Delphia e Global Predictions, assessorias de investimentos localizadas em Toronto e São Francisco, respectivamente, foram condenadas formal e recentemente pela SEC, em razão dos discursos falaciosos envolvendo AI, mediante a fixação de multa cujo valor total pago alcançou US$ 400.000,00, muito embora nenhuma das acusadas tenha admitido ou negado as alegações feitas pela SEC. A condenação veio a público em comunicado na imprensa oficial da SEC, na última segunda-feira (18), exposto pelo próprio Gensler, ao alegar que Delphia estaria assegurando a seus investidores, a previsão de ganhos e perdas, cuja tendência seria obtida por meio da utilização de ferramentas com tecnologia AI para o processamento de dados públicos disponibilizados por companhias listadas em mercado.
Por todo o exposto, entende-se que o discurso de Gensler oferece uma visão abrangente dos desafios e oportunidades que a AI apresenta no setor financeiro, destacando a necessidade contínua de regulamentação, transparência e equidade para garantir um futuro sustentável e ético para a interseção entre finanças e tecnologia, ao passo em que sua comparação entre greenwashing e AI Washing, converge com os debates em voga no mundo acadêmico, trazendo-os em evidência, em que pese a narrativa em rápida evolução da inteligência artificial nos mercados financeiros.
Em relação ao Brasil, o tema promete ganhar força, seguindo a tendência norte-americana. Ainda em 2022, baseando-se nas premissas da SEC, a CVM entendeu que a prestação de serviços por robo-advisors dependiam de autorização da CVM para atuar no mercado, nos termos da Resolução CVM 19/21. Para além do setor regulatório, o Projeto de Lei nº 2.338/2023 em tramitação no Senado Federal, busca fomentar e desenvolver o uso seguro, confiável e responsável da AI, prevendo a destinação de recursos financeiros para fomentar a capacitação profissional, o empreendedorismo e a utilização de ferramentas com tecnologia AI em território nacional.
Assim, considerando o rápido avanço e evolução da AI, é fundamental que as autoridades mantenham uma agenda regulatória e legislativa constante, flexível e célere, de modo que as transformações da tecnologia possam estar inseridas dentro do ambiente normativo, promovendo a segurança aos mais diversos destinatários, sejam as pessoas físicas, na condição de investidores ou tão somente utilizadoras da ferramenta, sejam as empresas, na condição de prestadoras de serviços, ou contratantes destes.
Daniel Becker, César Máximo e Victor Hugo Brito são advogados do BBL Advogados.