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Cadê os R$ 20 bilhões que estavam aqui?

O início do ano de 2023 para o mercado financeiro brasileiro foi marcado por um fato histórico e inédito: a Americanas, uma das maiores varejistas do país, anunciou uma “inconsistência” contábil que ocultava, até então, um prejuízo aproximado de R$ 20 bilhões.

icone de relogio 22/02/2023 16:44

Por André Damiani* e Diego Henrique**

O início do ano de 2023 para o mercado financeiro brasileiro foi marcado por um fato histórico e inédito: a Americanas, uma das maiores varejistas do país, anunciou uma “inconsistência” contábil que ocultava, até então, um prejuízo aproximado de R$ 20 bilhões. Em poucos dias as ações da empresa listada em bolsa “derreteram” e a companhia perdeu quase 80% do seu valor de mercado. Pouco tempo depois a Americanas entrou com pedido de Recuperação Judicial.

Sob o aspecto econômico-financeiro, as consequências são devastadoras. E sob o aspecto jurídico-penal?

De um lado, tem-se falado de maneira bastante genérica em potencial fraude perpetrada pelos administradores da gigante varejista. De outro, é sabido que a CVM instaurou processo administrativo para investigar a ocorrência de “insider trading”, prática que configura tanto ilícito administrativo quanto penal.

Nesse sentido, o art. 27-D da Lei nº 6.385/79 comina pena de um a cinco anos de reclusão e multa de até três vezes o montante da vantagem ilícita obtida, para quem utilizar informação relevante de que tenha conhecimento, ainda não divulgada ao mercado, que seja capaz de propiciar, para si ou para outrem, vantagem indevida, mediante negociação, em nome próprio ou de terceiros, de valores mobiliários.

Ainda, incorre na mesma pena quem repassa informação sigilosa relativa a fato relevante a que tenha tido acesso em razão de cargo ou posição que ocupe em emissor de valores mobiliários ou em razão de relação comercial, profissional ou de confiança com o emissor. Bem por isso, o insider trading é prática desleal que pode colocar em risco o bom funcionamento da Bolsa de Valores.

Trocando em miúdos, o delito acontece quando alguém toma conhecimento de algum fato relevante antes de todo mundo, e se vale desta informação para negociar ativos no mercado e lucrar de maneira indevida. Isto porque, o insider consegue antecipar os movimentos do mercado com informações ainda desconhecidas do público, por exemplo, comprando antecipadamente uma ação cujo preço irá disparar quando a tal notícia relevante vier a público.
No caso da Americanas constatou-se que a quantidade de operações apostando na queda das ações da varejista (short) logo antes da divulgação do fato relevante que atordoou o mercado (a inconsistência contábil na ordem de R$ 20 bilhões), ocorrera em patamares muito elevados, dando indícios de que alguém já sabia da contaminação dos papéis.

Além disso, outras operações envolvendo as ações da Americanas (opções de venda e de compra) ocorridas pouco antes do fechamento do pregão que antecedeu a divulgação da “inconsistência” também chamaram a atenção de especialistas por um volume de movimentação anormal, muito acima da média.

Nesse cenário de operações atípicas, os próprios diretores da empresa já vinham há alguns meses vendendo sistematicamente os papéis da companhia, chegando a um total de mais de R$ 200 milhões em operações deste tipo desde o último semestre, comportamento este que, se comprovado, pode se constituir em indício de práticas criminosas diversas.

Nesse particular, não é raro que práticas contábeis pouco ortodoxas no âmbito empresarial acabem por sair do controle e configurar delitos variados ou, pior, sejam essas, na verdade, uma tentativa de maquiar os crimes perpetrados de forma deliberada.

De uma forma ou de outra, os ilícitos vão desde uma simples falsidade documental à famigerada lavagem de dinheiro, passando por crimes falimentares, contra o sistema financeiro e contra a ordem tributária, com penas que vão de um até dez anos de prisão de forma cumulativa, ou seja, somando-se a pena de cada crime cometido.

Dito isso, é preciso ressaltar que erros de contabilidade não configuram qualquer ilícito penal per si. Contudo, “inconsistências contábeis” no montante de R$ 20 bilhões carregam uma infinidade de questões a serem respondidas e, certamente, não foi o gato que comeu essa dinheirama.


*André Damiani, especialista em Direito Penal Econômico, sócio fundador do Damiani Sociedade de Advogados

**Diego Henrique, advogado criminalista, sócio do Damiani Sociedade de Advogados

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