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Boaventura e Oliveira: "Mercado de seguros vive ponto de inflexão"

Além de superar a crise de confiança do segurado, reafirmando a sua importância e utilidade, o tradicional mercado segurador tem o desafio de descobrir novas funções, aprimorar técnicas existentes e inovar-se.

icone de relogio 22/07/2020 12:42

*Por Vitor Boaventura e Inaê Oliveira*

É comum que acontecimentos de grande magnitude social e econômica antecedam inovações jurídicas. Em matéria de seguros, no longínquo ano de 1666, o grande incêndio de Londres, e o irromper da revolução industrial, repercutiram de modo permanente sobre a demanda e o formato dos seguros contra incêndio[1]. Em 2002, após os ataques de 11 de setembro, nasceu o Terrorism Risk Insurance Act (TRIA).

Não é de hoje que eventos extraordinários e reformismo – ora com apuro técnico, ora nem tanto – tendem a caminhar juntos. No caso particular dos seguros, a tendência de reforma acompanha o aumento da percepção pública sobre determinado risco. Diante do evento que faz com que a sociedade perceba as consequências da materialização daquele risco, surge a dupla necessidade de mitigar os efeitos do risco presente, já ocorrido, e pensar em alternativas para proteger-se contra sua possível reincidência.

Desde o início da pandemia de Covid-19, observa-se este debate na sociedade, que percebeu riscos biológicos e sanitários antes largamente ignorados. Isso se soma ao aumento da percepção social sobre outros riscos considerados remotos, como os ambientais e os cibernéticos,[2] e se tornou combustível para novas formulações jurídicas.

O debate sobre as normas e contratos vigentes, assim como o conjunto de regras em formulação hoje, no centro da crise, influenciarão as respostas jurídicas do amanhã. Talvez, este amanhã se descortine logo, já em 2021, ou mais adiante, em 2030, ou daqui a duas décadas. Impossível precisar o ritmo da marcha imponderável da vida.

As novas formulações, arquitetura que são de um mundo novo, repercutirão sobre todos. Na interseção entre o velho e o novo, há um interlúdio – um momento de incerteza, mas também uma oportunidade geracional de transformação na qual há muito em jogo. Não surpreende que, mundo afora, legisladores, reguladores, seguradores e resseguradores estejam não só tentando responder à crise já instalada, mas também discutindo quais as vigas da nova arquitetura normativa, com olhos voltados ao porvir, que promete ser verde.

Nos Estados Unidos, tramita no Congresso o projeto de lei para a criação do Pandemic Risk Insurance Act – PRIA (H.R. 7011), com modelo de cobertura baseado no TRIA. A proposta prevê indenização às empresas pela interrupção de negócios em uma situação declarada de emergência de saúde pública. As seguradoras cobririam as primeiras indenizações, em valor calculado em percentual sobre prêmios arrecadados no ano anterior até o limite de US$ 250 milhões em perdas e, depois, o Estado se responsabilizaria até o limite de US$ 750 bilhões. O PRIA divide opiniões dentro do próprio mercado de seguros. Há quem argumente que “riscos pandêmicos” são inasseguráveis e devem ser garantidos apenas pelo Estado, nenhum papel cabendo às seguradoras. Há quem, acertadamente, considere que os riscos são asseguráveis, mas argumente que a parceria público-privada deve ser feita em outros termos, com exposição máxima das seguradoras entre US$ 30 e 60 bilhões e exposição do Estado até US$ 1,1 trilhão.[3]

No Reino Unido, discute-se uma nova expansão da Pool Re – uma estrutura de cobertura criada em 1993, inicialmente pensada para as ameaças terroristas do IRA, e posteriormente utilizada como parte de um programa nacional para proteção dos riscos de inundação – como alternativa para a proteção social dos riscos de pandemia.[4] Na França, discute-se se o modelo da Caisse Centrale de Reassurance, criado em 1982 para proteção contra catástrofes naturais, poderia ser adaptado para situações de pandemia.[5] Em todos os casos, há preocupação com o “skin in the game” das seguradoras e com a adequada distribuição de risco (garantia oferecida) e retorno (prêmios arrecadados) entre seguradoras e Estado.

Nesse momento de crise, que contém oportunidade e traz consigo ventos de mudança, o mercado de seguros vive um ponto de inflexão. Por um lado, está em fermentação uma crise de reputação, de escala desconhecida. Muitos, sentindo-se desamparados com a falta de cobertura para riscos contra os quais se consideravam protegidos, ou lesados por aumento de prêmios e dificuldade na renovação de apólices,[6] questionam a função e a utilidade dos seguros. Pesquisa recente, publicada por respeitada agência de classificação de risco, identificou que a frustração de pequenas e médias empresas no Reino Unido acerca da cobertura em suas apólices de lucros cessantes resultaria na desistência permanente de contratar esse tipo de seguro para um quinto delas[7].

Por outro, o amanhã pode ser um locus promissor – no assegurado mundo novo, seguros podem ter revigorada importância econômica e social. Para não ficar apenas nos riscos sanitários, pode-se pensar nos riscos climáticos. Eles acentuam, por exemplo, a necessidade de seguros rurais acessíveis e eficientes para que a atividade agrícola não dependa apenas de operações de crédito subsidiadas e do endividamento do produtor rural. Enquanto tipo contratual cujo traço característico é a assunção de riscos, sejam eles cotidianos ou remotos, o seguro tem uma função essencial a desempenhar para que o futuro – no campo, na tecnologia, no espaço – possa ser desbravado. Aproveitemos o tempo presente para construir um assegurável, e admirável, mundo novo, com seguros bem estruturados, ricos em conteúdo e possibilidades, que permitam que indivíduos e empresas possam “boldly go where no one has gone before.”[8]

Além de superar a crise de confiança do segurado, reafirmando a sua importância e utilidade, o tradicional mercado segurador tem o desafio de descobrir novas funções, aprimorar técnicas existentes e inovar-se – e.g., tornando-se um instrumento para governança corporativa através da aplicação de tecnologias e procedimentos disruptivos. Contudo, toda reforma requer debate franco e compromisso de todos os atores envolvidos com a manutenção da essência e substancialidade do seguro – da persecução da sua função social, portanto.

Durante o interlúdio, tempo de isolamento e de oportunidade, lembremo-nos da lição do gaúcho poeta, segundo o qual “a vida é o dever que nós trouxemos para fazer em casa.”[9]

* Vitor Boaventura é advogado e mestre em Regulação (LSE). Inaê Oliveira é advogada e mestranda em Direito Civil (USP). Ambos são sócios de Ernesto Tzirulnik Advocacia – ETAD.

NOTAS

[1] Cf. Pearson, R., 2004. Insuring the industrial revolution: fire insurance in Great Britain, 1700-1850. Ashgate.

[2] Em relatório publicado em junho de 2020, o Swiss Re Institute mapeou novos riscos e tendências acentuadas pela pandemia de Covid-19, com destaque para cybersegurança e desenvolvimento sustentável (e.g., futuro de baixo carbono, prédios verdes, risco de baterias de lítio). Disponível em: <https://www.swissre.com/media/news-releases/nr-20200604-sonar2020.html> último acesso em 14/07/2020.

[3] Armstrong, R. US insurance industry rift deepens over pandemic cover. FT. 9 jul. 2020. Disponível em: <https://on.ft.com/2ZdLvyE> último acesso em 14/07/2020.

[4] Insurers plan to include pandemics in UK terror scheme. FT. 1 jun. 2020. Disponível em: <https://on.ft.com/2zJc2Ke> último acesso em 14/07/2020.

[5] Designing insurance for the next pandemic. FT. 28 mai. 2020. Disponível em: <https://on.ft.com/2X7nPKX> último acesso em 14/07/2020. Em abril, o panorama francês também foi brevemente apresentado pela Profa. Anne Pellissier (Universidade de Montpellier) na série “Panorama mundial - o Covid-19 e as operações de seguro na França”, organizada pelo Instituto Brasileiro de Direito do Seguro (IBDS). O vídeo está disponível em: <https://youtu.be/FL-OBmMwOG0> último acesso em 14/07/2020.

[6] Ralph, O. Insurance prices rise across the board as coronavirus hits. FT. 24 mai. 2020. Disponível em: <https://on.ft.com/2TyztfE> último acesso em 14/07/2020.

[7] UK companies to shun business interruption insurance. FT. 4 mai. 2020. Disponível em: <https://on.ft.com/2SzxR4X> último acesso em 14/07/2020.

[8] “To boldly go where no man has gone before” é a frase imortalizada na abertura de Star Trek (no Brasil, Jornada nas Estrelas).

[9] O Tempo. Mário Quintana.

 

 

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