*Coriolano Gatto
Em Brasília, costumava dizer um político que conheceu como poucos os meandros do poder, há dois grandes grupos: os insatisfeitos e os ingratos. O primeiro engrossa a fila de pleitos de políticos, empresários e lobistas não atendidos e o segundo, mesmo tendo o pedido aceito, afirma que o governante não fez mais do que a sua obrigação. O presidente eleito Lula, antes ainda de tomar posse, já tem um contingente grande nos dois grupos.
Lula sabe que tem poucos dias para aprovar a PEC da Transição, pois em caso contrário, o Bolsa Família a R$ 600 e o adicional de R$ 150 por criança de 0 a 6 anos sairá apenas em março pelos trâmites do novo Congresso Nacional, que só tomará posse em fevereiro. Isso para não falar que o novo Senado, com forte viés de alta de centro-direita, fará uma oposição ferrenha a uma licença para gastar R$ 200 bilhões a mais do que estava previsto no Orçamento de 2023.
Bem, fazendo todas as concessões ao presidente da Câmara, Arthur Lira, inimigo figadal do senador Renan Calheiros (MDB-AL), cujo filho e ex-governador está cotado para um ministério, a PEC será aprovada sem sustos e sob signo da desconfiança do mercado financeiro.
Um economista que conhece como poucos as contas públicas e há 40 anos acompanha os bastidores de Brasília, tendo já ocupado um relevante cargo público, acha que há uma dose de exagero nas repercussões negativas da super PEC. Para quem já viu a moratória da dívida externa (Governo Sarney), o confisco da poupança (Governo Collor) e a crise cambial de grande magnitude (início de FHC 2), os gastos elevados, direcionados a áreas estratégicas como Saúde, Educação, Meio Ambiente, além do Bolsa Família, podem ser compensados, ao longo de 2023, por outros cortes de despesas.
Joaquim Levy (Dilma 2) e o ministro da Economia Paulo Guedes tentaram, sem sucesso, dar a tal da facada no Sistema S. Ambos falavam em um corte de 30%, o que certamente reduziria o encargo sobre a folha de pagamentos das empresas.
Há muitos subsídios privados que não fazem o menor sentido. Sem eles, é possível reduzir os elevados impostos pagos pela indústria, que hoje representa apenas 11,2% do PIB. Guedes conseguiu uma boa redução do IPI – a ideia original era zerar o Imposto – mas aí esbarrou no cartório chamado Zona Franca de Manaus, curiosamente criado pelo liberal Roberto Campos, no Governo Castello Branco (1964-1967), avô do presidente do Banco Central.
A montagem da equipe de Fernando Haddad para o recém-criado Ministério da Fazenda a partir de 1º de janeiro parece ter uma lógica. Assim como Antonio Palocci, em Lula 1, optou por uma equipe ortodoxa, é natural que Haddad componha com nomes afinados com ele, receita o experiente economista. A ideia de por secretários com visões de mercado – como apregoam os conhecidos ortodoxos da Faria Lima – tem o mesmo sentido de um urubu voar de costas.
Por definição, todos os ministros da Fazenda ou da Economia compõem equipe alinhadas com o seu propósito de desenvolvimento econômico e de equilíbrio fiscal. Ninguém imagina que o novo governo, ainda que tenha tomado atitudes intempestivas – é fato que o discurso de Lula na diplomação desagradou os 58,5 milhões de pessoas que votaram em Bolsonaro o que aumenta mais ainda a tensão política – vá apostar em decisões irresponsáveis, que levem a uma situação de ingovernabilidade. O Brasil, no curto período de 24 anos, teve dois impeachments, fora o golpe militar em 1964.
Mesmo a escolha de Aloizio Mercadante para o BNDES não pode ser atribuída a um capricho de Lula. O banco, com ativos de quase R$ 800 bilhões, tem rígidos controles internos e é pouco provável que o economista da Unicamp siga a fórmula de Carlos Lessa, que paralisou o BNDES por quase um ano ao trocar quase todos os superintendentes que, segundo ele, trabalhavam para o governo FHC 2, o que não era verdade dado o alto grau de competência dos técnicos do banco de desenvolvimento.
Não há espaços também para a criação de soluções mágicas, como a reedição do PSI (Programa de Sustentação do Investimento), na era Luciano Coutinho (2007-2016). Os recursos são escassos e há uma série de bombas fiscais à vista, como os R$ 80 bilhões que os estados perderam com as reduções expressivas de ICMS para combustíveis, energia elétrica e telecomunicações.
Todos os cidadãos de bem torcem para que o Lula 3 não repita erros históricos do petismo e não haja como o premiado escritor Philip Roth, que em “Fatos” (Companhia das Letras), sua autobiografia, pôs em xeque as suas grandes qualidades de romancista.
“Meu palpite é que você escreveu metamorfoses de si próprio tantas vezes que não tem mais ideia do que você é ou do que já foi. A esta altura você é um texto ambulante”.
Espera-se que Lula não repita a frase de que virou uma ideia, pronunciada antes de cumprir a pena de 580 dias em Curitiba, em processo que o STF julgou o então juiz Sergio Moro de parcialidade. Não é hora para metamorfoses ambulantes. Apenas na música consagrada de Raul Seixas. É hora para sair do palanque.
*Coriolano Gatto é jornalista
Imagem: Fabio Rodrigues-Pozzebom/Agência Brasil