Por Coriolano Gatto*
Às vésperas de completar 80 anos, a Fundação Getulio Vargas teve em Eugênio Gudin o seu personagem mais complexo e sólido na teoria econômica. Não há base de comparação para a sua obra, que inclui também o pendor de articulista afiado, tendo sido amigo e impulsionador do jovem Assis Chateubriand – o fundador dos Diários Associados – e parceiro do jornalista e empresário Roberto Marinho, por quase cinco décadas. Eram nas colunas semanais de O Globo que expunha o seu ideário – um defensor ardoroso da economia baseada na produção agrícola e nos produtos primários em contraposição aos industrialistas de São Paulo. Carregava o epíteto de entreguista, defensor dos capitais internacionais, pela esquerda nacionalista. Pura tolice.
Fundador do curso de Ciências Econômicas da UFRJ, Gudin se graduou em Engenharia em 1905 na Escola Politécnica (EP) que era autônoma. Depois, nos anos 1930, a Escola passou a fazer parte da Universidade do Brasil. A seguir, virou Escola Nacional de Engenharia até ganhar o nome definitivo: Escola Politécnica da UFRJ, a maior do Brasil.
O economista foi um ardoroso apoiador das grandes iniciativas na formação da nação brasileira. É da lavra dele a criação das contas nacionais à época em que fundou o Instituto Brasileiro de Economia – o FGV Ibre, celeiro de grandes economistas das mais variadas tendências, no longínquo 1951.
A FGV, por definição, é apartidária. Nem vamos, aqui, mergulhar na contribuição densa de Gudin ao pensamento econômico. Samuel Pessôa (“O subdesenvolvimento brasileiro segundo Eugênio Gudin”, Revista Inteligência, edição 102, Insight Comunicação), Luiz Roberto Cunha e outros já fizeram o trabalho com o rigor acadêmico necessário. São doutores nessa matéria.
O que a leitora e o leitor devem desconhecer até agora é a capacidade de Gudin de transitar em diferentes correntes do pensamento, a julgar pelos autógrafos – aqui reproduzidos – e os seus livros de ficção de sua biblioteca, o que inclui uma obra clássica de Goethe, em francês, “Fausto”, edição de 1866, comprada em um sebo no início do século XX, em Paris, onde estudou e desfrutou de grandes amizades, como Roland Garros. A obra foi doada para a Memória da Unipar.
Gudin tinha admiração por João Teixeira Soares, um visionário como empresário, a exemplo de Irineu Evangelista de Souza, o Barão de Mauá. JTS, como era conhecido, não ficou atrás de Mauá na capacidade do empreendedorismo, segundo entendimento do próprio Gudin, em um célebre discurso em 1942, por ocasião do batismo de uma aeronave de JTS, evento organizado por Assis Chateaubriand no lançamento da campanha “Deem Asas ao Brasil”, em plena Segunda Guerra Mundial. JTS teve como neto Alberto Soares Sampaio, pioneiro da petroquímica brasileira, em 1947, que, mais tarde, criaria a Unipar, uma holding que controla 14 empresas.
“O jovem Gudin já aprendera a amar Paris, a França, os vinhos, a comida e as moçoilas. Quanto aos vinhos, em particular, apreciava-os com entusiasmo. Segundo Maria Lucia, filha de Violeta, sua terceira esposa. Quando ele já era um respeitável senhor, aproximando-se da idade centenária, gostava de dizer aos familiares, após examinar o obituário do jornal: “Existe uma coisa em comum nessas pessoas que morrem cedo. Peguem o jornal, leiam o obituário e vejam… bebiam água! Água enferruja.” Gudin preferia o vinho até para tomar remédio. Roberto Campos um dia disse: “Gudin era incapaz de resistir a um vinho velho e uma ideia nova”.**
Eram as novas ideias que o motivaram a frequentar a Ponts et Chaussées. Lá se discutia Engenharia e Economia. Até hoje, existe o chamado seminário Maurice Allais.
Não por coincidência, no autógrafo de seu clássico livro “O Mundo Que Vejo e Não Desejo” (José Olympio Editora, 1976), Roberto Campos compara Gudin ao melhor artesão, ao artífice, repetindo dedicatória de T.S. Elliot, no livro “A Terra Desolada”, a Erza Pound. O livro de Elliot foi traduzido pelo cronista Paulo Mendes Campos com ilustração da jovem artista plástica Fayga Ostrower, ex-aluna do primeiro curso de artes gráficas da FGV, nos anos 1940. À época, Campos era embaixador em Londres.
Os autógrafos revelam a pluralidade de Gudin, que não aceitava o pensamento hegemônico. Com simplicidade, dois grandes economistas escrevem ao mestre: o jovem Antônio Delfim Netto e o veterano Celso Furtado. O primeiro dedica a sua emblemática e relevante tese de mestrado, de 1959, a respeito do problema do café – por essa época a commodity respondia por cerca de 70% das exportações brasileiras –, enquanto Furtado, “A Pré-Revolução Brasileira” (Editora Fundo de Cultura, 1962), fez questão de prestar uma homenagem ao mestre, dois anos antes do golpe de 1964. Furtado era ministro de Planejamento, o mais importante formulador econômico de João Goulart, deposto pelos militares.
Há outros dois achados em dois clássicos da economia, doados por Luiz Roberto Cunha, seu neto afetivo. O “Essays in the Theory of Employment”, de Joan Robinson, de 1947, em que Gudin grafa trecho com um lápis vermelho. E o “How To Pay for the War”, de John Maynard Keynes, de 1940.
O amigo Octavio Gouvêa de Bulhões escreve, em maio de 1969, uma dedicatória afetiva no livro “Dois Conceitos de Lucro” (APEC Editora) em que menciona os ensinamentos do velho mestre e a esperança na construção de um capitalismo em que é necessária a distinção entre lucro especulativo e lucro de eficiência. Este último aumenta a produtividade e melhora a arrecadação do governo com impostos, cria mais empregos, expande os dividendos dos acionistas e, acima de tudo, traz vantagens para os consumidores que podem comprar produtos novos em melhores condições. Como Gudin, Bulhões também foi ministro da Fazenda e presidiu o FGV Ibre, tendo feito mudanças inovadoras no Instituto.
O que chama a atenção é para a pluralidade de Gudin, que acolhia diferentes correntes do pensamento econômico, o que seria uma espécie de leitmotiv da moderna FGV. A síntese é o recado dado por Bulhões em que destaca para o amigo as suas qualidades de articulista. Na Apresentação do livro, Campos, ressalta que “há sempre uma solução simples para cada problema: nítida, plausível e errada, segundo H.L. Mencken”, em referência a um grande jornalista e crítico social dos Estados Unidos.
Eugênio, identificado com os conservadores, tinha salvo-conduto nas amplas forças do pensamento econômico por uma razão simples: ele identificava o motor vivo e autêntico, independentemente de ideologias, pautando, dessa forma, o ideário da FGV. Não que renunciasse a suas convicções liberais. Mas, por um princípio que norteou a Escola que construiu por mais de cinco décadas: plural e apartidária.
Gudin, nascido em 1886, morreu 100 anos depois. Em março de 1986, publica a sua última coluna em O Globo e se despede do amigo Roberto Marinho, antecipando o que chamara de “fatalidade biológica”. Marinho se emociona com a carta do velho amigo, um companheiro de longa jornada. Gudin escreveu na imprensa de 1924 até falecer, tendo produzido cerca de mil colunas para o O Globo, jornal em que demonstrou toda a sua maturidade intelectual, escrevendo também sobre assuntos gerais, noves fora a economia. Campos e Mario Henrique Simonsen elogiaram a capacidade do amigo em traduzir realidades complexas para o grande público sem perder o bom humor. Campos ousa afirmar que Gudin era o melhor escritor entre os economistas brasileiros de sua época.
Eugênio Gudin fora um homem além do seu tempo e dedicado à formação de gerações de economistas, como a FGV, a quem serviu de forma gratuita entre 1944 e 1986.
*Coriolano Gatto é jornalista e coeditor da biografia de Eugênio Gudin, disponível gratuitamente na FGV Editora.
**Trecho de livro “Eugênio Gudin – Inventário de Flores e Espinhos”, Editora Insight Comunicação, de Márcio Scalercio e Rodrigo de Almeida.